quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

A capacidade de se indignar

Coisas ruins acabam se tornando "normais" na nossa cabeça. O que era absurdo, impensável, inaceitável, passa, um dia, a ser comum. Não sei exatamente em que momento acontece. Você sabe, é tanto caso de assassinatos, torturas, crimes contra a liberdade e todos os tipos de abusos cometidos por aí que a notícia passa a ser “mais um episódio violento”, mais uma morte pra estatística do ano e um acontecimento para ser citado na retrospectiva da TV, um dos tantos temas pra conversa de elevador.

E a distância também contribui para a ideia geral de que é o outro que sofre, o outro que jamais sou eu ou alguém próximo de mim, é sempre um grupo lá longe. Com pessoas que não têm relação com nossa vida, diretamente. É até normal que uma das reações seja “ufa, não é no Brasil, não é na minha cidade, não é na minha rua". Estamos, de forma ilusória, protegidos pela ideia de que “é sempre com os outros”. É humano. E é, também, reconfortante perceber que não fomos abatidos pela tragédia que matou tantas pessoas hoje. Ainda estamos vivos, nossas famílias ainda estão nos esperando em casa.

Mas apesar de muitas vezes nos deixarmos absorver pela "normalidade" das tragédias, apesar de nos tornarmos meio apáticos, o baque coletivo existe em determinados momentos, como no caso do atentado contra a revista Charlie Hebdo, na França, onde 12 pessoas morreram. São momentos em que paramos (ou deveríamos parar) para pensar: que mundo é esse que criamos e o que estamos fazendo de errado pra que ele continue nos matando, de surpresa ou com prévio aviso, das mais diferentes formas de violência?

Mesmo que tenhamos crescido e nos acostumado com as tristezas e fatalidades da vida, a indignação precisa continuar existindo em algum lugar da gente. Principalmente se a tragédia é fruto de ação e reação humanas, sendo exatamente por isso plenamente evitável.

A indignação tem de existir em cada um, sejamos nós parentes das vítimas ou apenas leitores do outro lado do oceano, ou mesmo gente que só ouviu por alto o assunto.

Tem de haver indignação sempre que morrem pessoas, 12, 300 ou somente uma, aquela que sai sem nome no jornal (“mulher de 37 anos é baleada”; “homem de 25 anos é encontrado sem cabeça”).

Tem de haver indignação, revolta, questionamento, discussão. Temos de falar sobre o assunto, não deixar que caia na banalização do "é, isso é o mundo".

Não dá para fechar a página do site de notícias e ir tomar café tranquilamente. Quando uma tragédia com pessoas acontece, algo muda no mundo, definitivamente. Ele não será igual nunca mais, e a cada vez que uma nova tragédia acontecer, essa primeira ecoará mais e mais forte, para sempre. Mesmo que continuemos fechando o jornal e ligando a TV na novela.

São pessoas, poderia ser eu, você, meu professor, minha vizinha. Minha mãe, meu pai, meu filho. Estamos todos sujeitos simplesmente porque estamos vivos.

Quando eu estava na faculdade, um fato extremamente trágico aconteceu com a família de um amigo. Lembro que uma aluna entrou na sala e anunciou o fato. Ficamos todos meio em silêncio, perguntando uns aos outros como, onde, por quê, tentando entender. Cinco minutos depois, vi um grupo de colegas discutindo se deviam ou não ir ao cinema. Lembro que a fala de duas pessoas foi essa:
- Por quê, me diz?
- Por que o que? Coisas ruins acontecem com pessoas boas? - E caíram na risada, voltando a falar de amenidades.

E, porra, era um amigo que passava, provavelmente, pela pior situação da vida dele. Não entendi, nunca, como isso gerou, entre aquele pequeno grupo, uma comoção de alguns minutos e depois a total falta de preocupação com o fato. Como se fosse uma notícia de “acabou o pão na padaria, teremos de ir em outra”.

Ok, é possível avaliar por outro ponto de vista. Algumas pessoas não conseguem lidar com fatos trágicos e acabam fugindo pela tangente. Falar sobre o terrível, para elas, é tão ruim quanto viver algo terrível. Entendo, em partes (partes bem pequenas, confesso).

Esses tempos, conversando com uma de minhas irmãs sobre o que eu definitivamente não consigo aceitar (como pessoas próximas sendo preconceituosas e intolerantes deliberadamente), ela me disse algo que ficou martelando na minha cabeça: “Sim, você fica indignada, isso é da sua natureza, você é jornalista”. Ok, sou. Mas mais do que isso, eu sou uma PESSOA. Como não se abalar, como, como, como? Então, se vomitam absurdos na minha frente eu devo apenas sorrir, amarelo, e perguntar sobre o tempo? É menos conflituoso, claro. Mas bem mais nocivo à minha saúde mental.

Coisas que perdi pelo caminho

Talvez, é verdade, eu tenha perdido um pouco da capacidade de me indignar ao longo dos anos, tão preocupada em ocupar uma boa vaga no mercado de trabalho, evoluir, evitar problemas, manter boas relações familiares. Talvez tenha perdido a força de dizer que não posso aceitar a falta de empatia e o riso que tira a importância de um fato absurdo.

Fui deixando de dizer, aqui e ali, o que me indigna, no momento certo e em alto e bom som. Fui deixando de defender causas e questionar opiniões e atitudes. Isso me deixou menos eu e um tanto mais pobre emocionalmente.

Mas, sabe, hoje eu senti que não é preciso abandonar o bom senso pra ser feliz, e que é extremamente saudável manter isso vivo, bem vivo. Talvez eu tenha me permitido passar pelo processo de pasteurização que acontece na entrada na vida adulta, pode ser que tenha me deixado levar pela filosofia do “isso não vai mudar, mesmo”. Mas eu não gosto disso e me sinto uma imbecil nessa roupinha de mocinha conformada que quer evitar estresse. Dá pra mudar, dá pra gritar, dá pra fazer algo, sim.

Sempre dá.

E dá pra gritar “ISSO ESTÁ ERRADO, PORRA” quando algo absurdo acontece ali, na nossa frente. Aliás, espero que passemos a gritar por mudanças cada vez mais. Eu pretendo.

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