domingo, 5 de março de 2017

Lisa (ou: nem tudo precisa ter um fim)


Esse texto é de 2010 e nunca foi terminado. Mas nem tudo precisa de um fim. 

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- É que você precisa saber que é um grande filho da puta.

Foi chorando só com o olho esquerdo que Lisa me deixou antes de fazer aquela besteira. Eu não achei que ela fosse dar cabo da ideia. Jamais imaginei que tivesse coragem, uma menina tão frágil. Quando a conheci ela estava arrumando a estante de livros da loja e eu perguntei se tinha Ana Karenina. E já começou me dando mais do que pedi desde aquele dia: a estante de autores russos fica ali. A parede toda, de cima abaixo, com obras raras e eu bobo de olhar aqueles livros de capa dura cheirando a poeira. Na ponta dos pés, ela só se concentrava em tirar e recolocar a pilha de livros de acordo com uma ordem que alguém devia ter estipulado, talvez o gordo careca e oleoso dono do lugar, que nunca me dava nem um real de desconto, podia ser a pior das velharias. O preço é o da etiqueta, era só o que ele sabia dizer. E botar aqueles discos dos anos 70 pra tocar o tempo todo.

Naquela época eu ainda comprava discos de vinis, andava pela cidade com eles debaixo do braço e parava pra tomar água ou cerveja no bar onde todo mundo ia pra conversar sobre o tempo, independente do tempo que fizesse. O caso é que Lisa não era do tipo que ia em bares, então como pra fugir do peso da ideia de que ela existia e estava ali tão perto e nunca iria se misturar a homens estranhos num beco, eu me deixava respirar ali o quanto eu precisava antes de seguir pra casa e pensar em como aparecer de novo naquele sebo no dia seguinte.

O Tilápia foi quem me mostrou que comprar livros usados podia ser bom, ficamos amigos trabalhando como lanterninhas no primeiro e único cinema da cidade. Ele dizia que o dinheiro não dava pra muita coisa, então fazia render comprando artigos usados: roupas, livros, discos e tudo mais que pudesse. Fui com ele uma vez na loja de livros usados e desde então virei fã da sensação de estar em um universo paralelo.

Naqueles anos a Lisa ainda nem devia sonhar que um dia carregaria um banquinho pra cima e pra baixo orientando pessoas a procurar autores pela ordem alfabética do sobrenome. E que teria de decidir se Paulo Coelho era literatura brasileira, autoajuda ou esoterismo. E que sonharia com montanhas de livros se acumulando sobre ela enquanto tentava se salvar como alguém que cai dentro de um silo cheio de soja e morre afogado. Soja e livros, o terror da garota, junto com filmes musicais, eu saberia disso muito tempo depois.

Mas eu ainda não conhecia Lisa e já disse isso antes, na verdade nem me lembro quem me atendia naquele sebo até então. Tenho uma vaga lembrança do gordo velho e seu bordão “é o que tá na etiqueta”.

O Tilápia me ensinou que trocar os livros era mais vantajoso do que pegar o valor em dinheiro, o preço era sempre maior pra quem trocava. Eu me divertia vendo que tinha conseguido meros três reais em algum livro que no dia seguinte já custava pelo menos oito, o preço escrito à mão em um adesivo sem vergonha que nunca saía, deixando aquela gosminha branca que depois ficava suja e estragava a capa do livro. Decerto pra gente ficar lembrando da cara suja do velho gordo e suado.
Enquanto isso, a Lisa ainda devia fazer segundo grau e andar pela cidade com uma mochila cheia de bottons, achando a palavra “anarquia” bonita e comprando pingentes que combinavam com pulseiras nas lojas daquela cidade com uma única avenida importante.

Aí eu saí do cinema e consegui vaga de caixa na sorveteria ali perto do sebo. Nenhum cliente me pedia desconto na casquinha, mas eu ficava só esperando pra dizer que o preço era o da plaquinha da parede.

E com um pouco mais de grana no bolso no final do mês já podia comprar livros novos e cds com encartes limpos, sem um infeliz ter assinado com “Luiz Lima 1998”, como sempre acontecia nos LPs. Mas aí o sebo já tinha virado uma diversão. E pra onde mais eu iria depois das cinco da tarde e onde mais eu ouviria Sá, Rodrix e Guarabira no fone de ouvido da vitrola, lendo gibis Tex sem ser incomodado? Era só gastar uns trocados toda semana e o velho nunca iria me cobrar nada, já que olhar na cara das pessoas pra ele parecia ser um problema desde sempre.

E andar com os bolachões dentro de uma sacola também já virara parte do hábito, gostava de pensar que eu era o cara dos discos de vinil andando pela cidade onde nasci como um homem à frente do meu tempo. É que as pessoas em geral tinham orgulho da modernidade e seus eletrodomésticos com mil funções, na época o CD player com espaço para cinco CDs ao mesmo tempo era o auge do avanço tecnológico. Eu só ficava pensando se tudo isso era preguiça ou necessidade, quem ia querer colocar cinco CDs e deixar tocando direto, se cada um tivesse pelo menos 40 minutos isso seria mais de três horas de músicas e você teria de continuar querendo ouvir sem mudar de ideia ou humor. A coisa bizarra que eu imaginava também era alguém colocando cinco gêneros musicais totalmente diferentes, só pra aproveitar o aparelho que foi comprado em doze vezes no carnê. Primeiro sertanejo que era a moda, depois pagode que também era moda, depois música clássica, depois rock pesado e depois sabe lá o que mais. E colocando no modo “repeat all discs”. Por três dias seguidos até o síndico reclamar ou algum vizinho resolver checar se você morreu de infarto fulminante e seu cachorro comeu seu braço esquerdo e o frango assado continua sobre a mesa. Não sei bem por que pensava isso, já que seria mais fácil pro cachorro comer o frango ao invés do braço.

A família da Lisa não devia ter essas coisas. Uma vez me contou que o pai quebrara a televisão num acesso de fúria e que agora ela tinha de comprar outra ou não ia mais poder ver MTV e os clipes que passavam de madrugada e assim, como poderia dormir? E eu imaginei uma garota nerd vendo televisão às três da manhã e que, diferente de mim, não perdia tempo com o Cine Privê, mas ficava entretida com pequenos vídeos de música alternativa. Ela gostar de TV de madrugada pra mim era um indício de anormalidade, tudo o que eu precisava pra me apaixonar por alguma garota, desde a Paula da terceira série que guardava as embalagens de biscoito na mochila e nunca jogava fora até a professora humilhá-la na frente dos colegas quando viu que a menina deixava rastros de wafer por onde passava.

Quando Lisa apareceu com um machucado na sobrancelha, eu tive cuidado pra não ser muito invasivo. Achei pertinente ela estar organizando a coleção de fitas VHS do Jet Li e aproveitei pra perguntar se, por acaso, ela fazia aulas de defesa pessoal. E que seria bom começar caso ainda não tivesse tido a ideia. Ela não sorriu na hora, mas depois tirou todas as fitas da terceira prateleira com um pouco de raiva e contou que não era má ideia e que havia quase batido no ex-namorado que tinha feito algo que eu não pude entender direito. E não importava mesmo já que naquele momento eu não consegui reagir ao fato de ela me dar bola e menos ainda ao fato de um cara ter feito qualquer coisa de mal pra Lisa. Tudo ficou meio escuro e eu fiquei pensando em como teria sido, a voz dela lá no fundo. “Aí eu disse pra ele que ia sair mesmo ele não querendo”. Eu só pensava em como ela não tinha chance de se defender e nem tinha alguém pra segurar o braço do cara pra trás e dizer: você é um filho da puta. E como eu não reagia a nada, nem à história e nem ao fim da organização das fitas do Jet Li, ela me olhou como quem olha para um estranho no meio da praça, deu de ombros e foi organizar os best-sellers na vitrine. Da inércia passei direto à ação: preciso comprar uma camisa pra ir à formatura de um amigo, você me ajuda a escolher? Me dei conta de que esse era o primeiro convite que fazia pra Lisa. Como aceitou, presumi que talvez quisesse me acompanhar também na festa do meu amigo, mas esta, como a maioria das previsões que eu faria depois sobre Lisa, estava errada. O não que ela me disse depois de sair da loja de camisas (eu com uma sacola de papelão na mão e uma vontade louca de beijá-la) foi simples e depois o ônibus chegou e quando pisquei ela já estava trocando uma nota de cinco com o cobrador e se sentando, um tchau meio sem vontade e o barulho do escapamento defeituoso e a fumaça na minha cara.

Meu pai tinha suas teorias sobre garotas e encontros. Uma garota que diz não no início é melhor do que a que diz sim logo de cara. Os ‘sims’ do começo geralmente são só uma máscara pra parecerem mais legais do que realmente são. Meu irmão dizia que você só é feliz com uma mulher dez dias por mês, que é quando ela não está na TPM, menstruada ou logo depois daqueles dias. E que isso se resumia a uma amostra do inferno pra qualquer homem normal. Bem, talvez eu não fosse um homem normal e me sentisse feliz absolutamente todos os dias com a Lisa, não importava seu humor, cara ou roupa que usasse. Nem a desculpa que me desse pra ir direto pra casa depois do trabalho ou pra não atender as ligações que eu fazia pra saber se tinha chegado bem. Não me importava nem com o cheiro de poeira que o cabelo dela tinha quando saía do trabalho, gostava quase mais do que do cheiro de shampoo que tinha quando eu buscava ela em casa pra ir comer uma porção de batata frita com maionese.

Duas semanas de encontros quase diários, depois - batata frita, discos, livros e ela reclamando do chefe e dos clientes-, eu contava sobre a cirurgia de catarata da minha avó quando ela parou no meio da calçada me olhando sério, mascando chiclete, e disparou à queima-roupa: quanto tempo mais vou ter que esperar até você QUERER me dar um beijo?



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